Eutanásia e Cuidados Paliativos

Confirma-se que a eutanásia será, em 2009, um tema prioritário da agenda parlamentar. Vale a pena, na semana em que se assinala o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos (que em Portugal não constituem, lamentavelmente, uma prioridade) pensar o que é, afinal, este "direito" a morrer.

Os argumentos a favor da eutanásia e do suicídio assistido exploram o medo que todos sentimos, não tanto da morte em si, como do sofrimento e da solidão perante ela. A utilização, quando indevida, dos chamados "meios desproporcionados" da medicina, infligindo aos doentes dores e desconforto insuportáveis, muito superiores aos eventuais benefícios que se esperavam desses tratamentos, reforçou estes sentimentos e permitiu que os defensores da eutanásia assentassem a sua argumentação numa alternativa extrema: ou se aplica a eutanásia ao doente ou ele morrerá irremediavelmente cheio de dor e sofrimento.

Com o fim das grandes escatologias, das perspectivas colectivas de um final feliz, religiosas ou científicas, como foi o caso do marxismo, os seres humanos viraram-se para um individualismo feroz e o sofrimento e a morte, a percepção do outro e a referência da dignidade humana foram perdendo sentido. Dizia-se que começávamos a morrer no dia em que nascíamos. Hoje, esta afirmação parece uma indelicadeza desnecessária. O mito dos recursos inesgotáveis da ciência e da tecnologia criou a convicção de ser possível eliminar todo o sofrimento e adiar indefinidamente a morte. 

O fim da vida, o tempo que precede uma morte anunciada é, por isso, um tempo de enorme perplexidade, em que tudo à nossa roda é posto bruscamente em causa. O sofrimento daquele doente terminal, criança, jovem, adulto, idoso, que devíamos partilhar numa total intimidade com ele, torna- -se insustentável para nós. Compaixão? Não. Medo, incapacidade, cobardia. A compaixão só se sobrepõe quando procedemos ao exercício dificílimo de nos vermos no outro e, assim, fazer com ele, e como ele, essa derradeira caminhada.

Ora os cuidados paliativos constituem uma outra via que quebra a dicotomia em que os defensores da eutanásia colocam a questão. São cuidados de saúde que não se destinam a curar mas a retirar todo o sofrimento e incomodidade aos doentes terminais. Cuidados familiares, porque os que acompanham o doente também precisam de orientação, apoio para um luto que se vai fazendo. Cuidados indispensáveis a um novo conceito de morrer em casa, em vez de morrer só e perdido num hospital. São também o tributo do "estado da arte" da medicina ao respeito pela dignidade da vida humana, ainda na sua fase final, mesmo quando, de modo simplista e egoísta, alguns sugiram que já não vale a pena fazer mais nada.

Em saúde, qualquer direito que se estabeleça torna-se universal. Esses direitos nascem sempre que as necessidades encontram resposta na ciência. Em Portugal, milhares de doentes e famílias (cerca de 180 mil) que precisam de cuidados paliativos, que têm direito a aceder a esses cuidados, não obtêm resposta. Corremos o risco da chamada "morte a duas velocidades". Onde exista uma cultura paliativa que difunda um saber-fazer e um saber-ser, haverá condições para um fim de vida digno e sereno. Onde tal não aconteça (e são muitos os casos...) estamos a substituir a possibilidade concreta de aliviar o sofrimento e dar serenidade, por um desesperado e solitário pedido de morte. A desigualdade de acesso aos cuidados paliativos é, pois, inadmissível.

A eutanásia não constitui, em si, nenhuma conquista ideológica ou política. Tal como o aborto ou as salas de chuto são o reconhecimento da nossa incapacidade para pôr a funcionar uma eficaz rede de planeamento familiar ou um bom plano nacional de luta contra a droga, também aqui isso é perigosamente claro. O desafio, sabemo-lo, é que ninguém, por falta de cuidados, se veja obrigado a reclamar a morte. Será que vai merecer agendamento parlamentar e mediático ou será que não é suficientemente fracturante?



Maria José Nogueira Pinto
Jurista 

In DN - 09. 10. 2008 

Lei e selva