Sigmund Freud

Partindo de umas observações que o levaram a um novo método de pesquisa e tratamento das neuroses, Freud construiu toda uma Antropologia baseada na liberação dos instintos. Essa interpretação hedonista do Homem – forçada e levada até às últimas conseqüências – já está caindo em desuso, embora os resíduos da sua influência ainda perturbem amplos setores da Cultura ocidental



“Temos que fazer da teoria sexual um dogma: uma fortaleza inexpugnável” (Sigmund Freud)


FILOSOFIAS DA SUSPEITA

O homem é feito de uma mistura inseparável entre razão e desejo. Uma mistura explosiva e altamente instável, cujo controle pertence por definição à razão, que ao longo da História idealizou diversas estratégias para integrar esses dois elementos. Já o hedonismo é a negação dessa função reitora da razão. É muito fácil de ser seguido na prática mas muito difícil de sustentar como postura intelectual. Nem sequer Epicuro atreveu-se a levá-lo até às últimas conseqüências. Para que se chegasse à justificação racional do hedonismo foi preciso esperar até o século XX.

As bombas da Primeira Guerra Mundial caíram também sobre a bimilenária cultura européia. Esmagado pela tragédia, o homem ocidental que surgiu dos escombros quis esquecer o passado como se fora um pesadelo. A promessa iluminista e positivista de um mundo feliz pelo caminho da Ciência tinha acabado num cruel desengano. A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade da Revolução Francesa tinham pouco o que dizer a um Continente coberto de cadáveres.

Mas apesar de tudo a Grande Guerra não foi o fim da História – a vida continua – e era preciso construir uma nova Civilização. Tratava-se de edificar sobre novos fundamentos, porque o pensamento anterior tinha desabado: o descrédito minava a razão grega, a ordem romana e o coração cristão. Os sobreviventes dirigiram o olhar para quatro novos pontos cardeais: Darwin, Marx, Nietzsche e Sigmund Freud (1856-1939). Todos tinham em comum a desconfiança na razão, a interpretação da História a partir da suspeita.

Marx acusava a razão de ter sido o instrumento dos poderosos para subjugar os fracos, de forma que “toda a História havia sido uma história de luta de classes, de lutas entre classes exploradoras e classes exploradas”. A Ética, concebida como produto do egoísmo das classes dominantes (Marx), também será interpretada como efeito do ressentimento dos débeis (Nietzsche), de uma psicologia reprimida (Freud) e de sofisticados mecanismos biológicos (Darwin).

Era necessário criticar o ponto de vista da moral, desmascarar a hipocrisia, libertar o homem do seu engano, acordá-lo do seu encantamento e revelar-lhe que os preceitos e proibições do passado eram meras ilusões. Contra a doença de pensar existe um remédio: conceder ao instinto a primazia sobre a razão. E para que tudo fique bem claro, Lênin concretiza toda a ambigüidade do vitalismo de Nietzsche na luta violenta de classes, e Freud sintetiza-a em duas palavras: liberação sexual.


A PSICANÁLISE

A célebre psicanálise freudiana é o estudo dos elementos que integram o psiquismo (*). Com base nela, surge uma teoria geral do comportamento humano, reduzindo-o às tensões entre o princípio do prazer (eros, manifestação direta ou indireta do instinto sexual) e o princípio da realidade (tânatos), que lhe faz constante oposição. O que originalmente surgiu como um simples método de pesquisa e terapia das neuroses paulatinamente foi se convertendo numa teoria geral, não apenas do comportamento humano, mas da própria natureza do homem e das suas manifestações fundamentais. Transformou-se assim num tipo de Antropologia.
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(*) Psiquismo é o nome dado ao conjunto dos fenômenos ou dos processos mentais de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos
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Freud distingue um fundo inconsciente e uma atividade consciente na conduta humana. No inconsciente, encontram-se as raízes da atividade consciente. Enquanto as tendências ou impulsos desse fundo vão fluindo livremente para o nível consciente, a vida psíquica é normal. Mas se encontram resistência ao emergir, se são rejeitadas do plano consciente de volta para o inconsciente, produz-se uma alteração patológica. Essa repressão significa a inversão do processo natural, que agora vai do consciente para o inconsciente. Nisto consiste o desequilíbrio psíquico.

O impulso natural do inconsciente foi batizado por Freud de id, e atua fundamentalmente como libido ou energia sexual, buscado uma satisfação ou descarga de acordo com o princípio do prazer. Sob a influência do mundo real, uma parte do id transforma-se no ego: o desejo consciente de satisfazer o prazer e de evitar a dor. Mas surge um forte obstáculo em seu caminho: “Como sedimento do longo período infantil em que o homem em formação vive dependendo dos seus pais, nasce no ego uma instância particular que perpetua essa influência parental: o superego”. O ego recebe o impulso sexual e ora o satisfaz, ora o transforma (como veremos adiante) e ora o reprime, de acordo com o princípio da realidade e com o superego, ambos produtos dos convencionalismos sociais. A personalidade do homem é o resultado desse processo e cresceria de modo saudável se a satisfação dos instintos fosse livre.

Para Freud toda a História e toda a Cultura são o resultado dessa tensão, pois o Pensamento, a Arte e a Religião são no fundo produtos da sublimação de uma libido sempre insatisfeita. Toda crença religiosa – tanto no plano individual como no coletivo – fica reduzida a uma neurose obsessiva. Freud travou com a Igreja Católica em particular uma luta ideológica sem quartel. No seu livro O porvir de uma ilusão (1927) escreveu:

A tentativa de obter uma forma de proteção contra o sofrimento mediante uma reelaboração ilusória da realidade é a empresa comum de um considerável número de pessoas. As religiões humanas têm de ser classificadas no grupo das ilusões massivas desse tipo. Não precisamos esclarecer que quem participa de uma ilusão desse tipo jamais a considera como tal.

A citação é redonda, mas a idéia é velha: no tempo de Sócrates, Crítias, o mais violento dos Trinta Tiranos, escreveu o mesmo na sua tragédia Sísifo.


CONTRA A CONSCIÊNCIA

A consciência moral – noção central na Ética clássica – é também criticada por Freud, que a considera um mero dispositivo de segurança, criado coletivamente para proteger a ordem civilizada contra a temível agressividade dos seres humanos. Talvez a essência do freudismo seja o intuito de abolir a idéia de culpa:

A tensão entre o áspero superego e o ego que lhe está submetido recebe em nós o nome de sentimento de culpa. Com ele, a Civilização impõe-se ao perigoso desejo individual de agressão: depois de debilitá-lo e desarmá-lo, cria no próprio indivíduo uma entidade que o vigia, como uma guarnição numa cidade conquistada.

A consciência vem a ser uma das faces do superego, o preço elevadíssimo que os indivíduos pagam para preservar a Civilização: o preço da “infelicidade pessoal, devida à tensão do sentimento de culpa”. Freud quis demonstrar que o sentimento de culpa não pertence à essência do homem, e que constitui o mais importante obstáculo ao progresso da Civilização. Se é a Sociedade quem inventa a culpa, então os sentimentos pessoais de culpa são ilusões que convém afastar.

Fiel ao seu tempo, Freud interpreta “os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de elementos materiais que se podem evidenciar”. Tal postura mecanicista concebe o psiquismo como uma maquinaria cujos elementos seriam o id, o ego e o superego (o consciente e o inconsciente seriam também partes dessa máquina), e na qual entram em jogo forças que descarregam ou reprimem, com uma dinâmica própria dos sistemas físicos. Forças que se reduzem ao impulso sexual, protagonista exclusivo das eventuais avarias ou disfunções do aparato psíquico.


O SIGNIFICADO DA SEXUALIDADE

A crítica fenomenológica tornou patente o fundo apriorístico e artificial da psicanálise, que encontra justamente aquilo que previamente decidiu encontrar. Freud declarou com grande sinceridade ao seu discípulo Jung: “Temos que fazer da teoria sexual um dogma: uma fortaleza inexpugnável” (Jung, Memórias). Essa trapaça fez com que Chesterton escrevesse: “Os ignorantes pronunciam «freud». Os bem-informados pronunciam «fróid». Eu, porém, pronuncio «fraude».



(Por José Ramón Ayllón)

Lei e selva