Lei e selva

Não falta muito para todos os portugueses terem cadastro na polícia. Com a ASAE e DGCI, radares de trânsito e inspecções periódicas, fiscalizações às instalações domésticas, código laboral, regulamentos ambientais e de consumo, entre muitos outros, cada cidadão, sobretudo se produtivo e inovador, conseguirá em breve uma contravenção grave no seu registo criminal.

Antes a lei tratava apenas dos crimes sérios. Vivia-se em liberdade mas se alguém fazia um grande mal era severamente punido. Hoje a maioria dos fiscais, inspectores, polícias e juízes trata, não de criminosos, mas de pessoas honestas. Todos vivemos debaixo de suspeita num Estado que regula os mais pequenos passos da vida.

A razão da mudança é clara: perda de confiança. Desde a Antiguidade que a base da vida em comum era a honra. Sempre houve malandros e abusadores, mas toda a gente era educada para ser honrada e acreditar na honra dos demais. Hoje o tempo é cínico e desconfiado, convencido de que só com castigos legais se impede os outros de violarem as regras. Desapareceram as condicionantes morais porque a ética é a lei. Sem portaria que proíba e puna, tudo é permitido.

As pessoas não são nem mais nem menos corruptas do que sempre foram, mas acham que os outros são horríveis. Continuam a considerar-se honestas, mas sentem-se rodeadas por bandidos. A imprensa encarrega-se de alimentar a suspeita. Por isso, vivendo na sociedade mais sofisticada de sempre, sentimo-nos num clima de selva, só controlado por polícias e multas. Mais bárbaro que as tribos primitivas.

João César das Neves

DESTAK| 05 | 03 | 2009


Uma Sexualidade sem Amor

Projecto de Educação Sexual nas Escolas: uma Sexualidade sem Amor


O projecto-lei relativo à educação sexual em meio escolar, recentemente aprovado na generalidade no parlamento, merece os seguintes comentários:

1) É com grande perplexidade que verifico que nesta Lei aprovada sobre educação sexual não conste uma única vez ao longo do texto a palavra “amor”. A sexualidade é uma linguagem que se exprime através do amor, sendo, portanto, indissociável deste. O sexo sem amor faz parte do instinto e dos impulsos primitivos. Porém, aquilo que se presume esteja por detrás do espírito da Lei é promover um processo completo de desenvolvimento humano que vai mais além da simples genitalidade ou da sexofilia. A sexualidade com amor é um valor universal que não pode ser esquecido em nenhum projecto sobre educação sexual.

2) Qualquer educador saberá que faz parte da educação a existência de limites aos desejos. A renúncia ao acessório para se alcançar o fundamental é um aspecto nuclear de qualquer tipo de educação. Estranhamente, não se verifica ao longo do texto da Lei qualquer menção ao auto-controlo, nem tão-pouco à educação do desejo, apesar de sabermos que é precisamente na educação do desejo que nasce uma sexualidade madura e responsável. Perante esta lacuna fica-se com a sensação de que o Estado entende que a educação sexual não obriga a escolhas responsáveis, e que o exercício da liberdade na sexualidade não deve passar pelo domínio dos impulsos sexuais. Desvalorizar este aspecto é promover uma sexualidade superficial, promíscua e sem pensamento. Esta é uma omissão grave no texto que não tem qualquer fundamento científico, mas que revela uma grande insensatez. Uma educação sexual que não liberte o homem do instinto origina pessoas egoístas, imaturas, insatisfeitas e neuróticas.

3) Este projecto-lei aprovado não contempla um aspecto da maior relevância: a educação sexual deverá respeitar as convicções éticas, morais e religiosas dos pais. Nesta Lei a família é secundarizada e praticamente ignorada, o que me parece inaceitável. Dado que a educação sexual não se limita à escola, nem pode ser dissonante da vontade dos progenitores, os conteúdos programáticos da educação sexual na escola deveriam ter obrigatoriamente a participação dos pais ou dos seus representantes. A ambiguidade da Lei ao nível do conteúdo programático assim o exige, sob pena do Estado servir-se abusivamente da escola para fazer propaganda ideológica, o que me parece inaceitável numa matéria tão sensível como esta.

Pedro Afonso, psiquiatra
http://oinimputavel.blogspot.com/

Legislação sobre a Eutanásia

A medicina recebeu um conjunto de contributos de praticamente todos os domínios das áreas científicas e tecno-lógicas que facultaram as condições para manter a vida humana, mesmo nos seus extremos limites. Com estes meios é possível interromper a outrora inexorável evolução para a morte de muitas doenças facultando a reintegração em padrões da vida pessoal, familiar e social correspondentes às melhores perspectivas. Este é um dos bons sinais da nossa civilização. Porém, em muitos outros casos, não obstante a judiciosa utilização de todos os meios, apenas é possível alongar o tempo de uma vida humana completamente dependente, na presença de grande sofrimento (orgânico e psicológico) para os doentes e para os que os rodeiam. Este tipo de situações tinha até há alguns anos uma história natural curta e previsível. Hoje, muitas destas situações prolongam-se indefinidamente com sequelas graves e incapacitantes, muitas com graves limitações das funções da vida, nomeadamente da motilidade e da autonomia. Outras permanecem com gravíssimas alterações da consciência e da capacidade cognitiva, permitindo apenas uma vida extremamente dependente do suporte das suas famílias e da comunidade envolvente, todos apoiados numa tecnologia escassa e cara, muitas vezes longínqua e dificilmente disponível.

Nas sociedades actuais há muitos doentes nestas situações de dependência e de vulnerabilidade. Acentue-se que a dignidade e a soberania das pessoas a quem, nestas circunstâncias extremas, se aplicam os cuidados de saúde constituem o valores mais elevados a defender. As manifestações da vontade, os interesses e o bem-estar dos doentes prevalecem sobre todos os outros interesses da sociedade, nomeadamente os de ordem científica e económica. Têm direito a ser tratados com todos os recursos que lhes possam diminuir a solidão, a dor, a angústia e o sofrimento. Porém, ninguém pode ser instrumentalizado no sentido de directamente lhes provocar ou facultar a morte mesmo que seja essa uma vontade expressa. Ninguém tem o direito de suprimir uma vida humana. Todos os doentes incuráveis devem ter acesso aos cuidados paliativos adequados à sua situação de doença.

As circunstâncias actuais da prestação de cuidados de saúde não existiam há algumas décadas. São, portanto, historicamente muito recentes. Contribuíram para um conjunto de questões de ordem ética, antropológica, jurídica, cultural e económica (referindo apenas a alguns domínios onde existe maior controvérsia) que se encontram em aberto e merecem ampla discussão de todos os sectores das sociedades. Existe uma estranha dialécti-ca entre o dever de viver e o direito a morrer, ou, de outra maneira, um conflito aberto entre os princípios bioéticos da autonomia e o da beneficência tendo como pano de fundo os conceitos de dignidade e da inviolabilidade da vida humana.

No discurso de há 51 anos aos participantes no Congresso de Anestesiologia de 24 de Novembro de 1957, Sua Santidade o Papa Pio XII instituiu os princípios fundamentais da intervenção da medicina nas situações graves e irreversíveis no termo da vida humana. Ainda hoje se mantêm com algumas modificações na terminologia e nos conceitos. A vida humana no seu termo não deverá ser prolongada com a utilização inadequada de todos meios que as tecnologias podem facultar: "a razão natural e a moral cristã ensinam que, em caso de doença grave, o doente e os que dele cuidam têm o direito e o dever de pôr em acto os cuidados necessários para tratar a doença, conservar a saúde e a vida. Tal dever geralmente compreende a utilização de meios que, consideradas todas as circunstâncias, são ordinários, ou seja, não comportam um encargo extraordinário para o doente e para os demais. Uma utilização mais intensiva de meios de intervenção poderá ser demasiadamente onerosa ou mesmo impossível para as pessoas e tornaria extremamente difícil a consecução de outros bens. A vida, a saúde e todas as actividades temporais estão subordinadas aos fins espirituais."

Começam a surgir as propostas de alteração do nosso enquadramento legislativo no sentido da eutanásia. Não é esse o caminho a seguir. A morte intencional, ainda que motivada pela dor insuportável e por solicitação do próprio, constitui sempre um irremediável atentado ao mais alto bem jurídico e uma brecha no fundamental direito à vida e à integridade das pessoas. A garantia de que a medicina é defensora e promotora da vida humana é um limite que não pode ser ultrapassado por nenhuma outra regra.

Alexandro Laureano Santos

O Desastre do Estado-Educador

Portugal é um país extraordinário, cheio de sucessos e coisas excelentes. Devemos amá-lo muito, até porque tanta gente diz mal dele. Mas por vezes é difícil não desanimar face aos disparates. Acaba de ser publicado um livro que mostra como o Estado viola repetidamente a lei e corrompe a liberdade num dos campos mais decisivos para o desenvolvimento.

Sobre os direitos fundamentais de educação. Crítica ao monopólio estatal da rede escolar (Universidade Católica Editora, 2009), do professor Mário Pinto, trata da liberdade de educação. Os pais têm o direito de escolher a educação dos filhos e o Poder tem de lhes dar os meios para isso. Este valor está garantido na Constituição da República e repetidamente assegurado na lei. Mas tais piedosos propósitos pouco têm a ver com a realidade.

Sabia que, por exemplo, o Estado tem a obrigação de "promover progressivamente o acesso às escolas particulares em condições de igualdade com as públicas"? (art. 4.º g) D-L 553/80 de 21 Nov.). A não ser que a palavra "progressivamente" signifique "nunca", a lei é flagrantemente desrespeitada.

A sensação generalizada na sociedade é que o ensino particular é uma coisa para ricos. Não admira, pois quem quiser escolher a escola dos filhos tem de pagar duas vezes, nas propinas a educação dos seus e nos impostos a educação dos outros. Isto até no ensino obrigatório, que a lei diz dever ser gratuito. Deste modo, o Estado recusa aos pobres a liberdade que a Constituição lhe confia.

De onde vem a limitação? "Não é a Constituição, nem a lei ordinária que impõem o monopólio escolar do Estado de facto existente, designadamente o monopólio do financiamento público; são as práticas governativas e administrativas, aliás em desobediência à lei" (p. 47). Sucessivos governos, apesar da evidência da catástrofe educativa, insistem em forçar o contrário da legislação.

Não se podem invocar razões económicas para tal, pois, como Mário Pinto demonstra, "dado que o custo médio por aluno na rede das escolas do Estado é mais elevado do que o custo médio por aluno nas escolas privadas (...), é mais económico para o Estado pagar o ensino nas escolas privadas do que pagar o ensino nas escolas estatais" (239). Acontece assim este paradoxo de os pobres terem uma educação mais cara que os ricos, com o Estado a esconder o facto e a expandir a solução ruinosa.

O desastre não é de hoje. Portugal "desde o despotismo iluminado viveu continuamente em regime autoritário de Estado-educador" (30). Qual a razão para tão flagrante e continuado desrespeito da lei e liberdade? Mário Pinto mostra bem as terríveis forças que o manobram: "Explicação para este conservadorismo do modelo escolar é, sem dúvida, o domínio de interesses corporativos muito fortes sobre as sucessivas políticas governativas e administrativas: desde logo, por parte da própria Administração Escolar (que é uma antiga e poderosa tecno-estrutura de poder burocrático da Administração Pública); bem como dos sindicatos dos professores (maioritariamente influenciados por dirigentes defensores das carreiras públicas e de um monopólio de Estado no sistema educativo), com enorme interferência no Ministério da Educação; e, ainda, da corrente universitária de tendência construtivista iluminada, instalada nas escolas superiores públicas de educação" (33). Subjacente a isso está a irresistível atracção totalitária do uso da educação como forma de controlo: a "tentação do unitarismo, que patentemente inspira a concepção estatista do ensino escolar, e detesta as escolas privadas" (213).

Mas será que, monopolizado e centralizado, o sistema de educação é bom? Não é antes a triste situação das nossas escolas algo que os sucessivos governos censuram aos antecessores e prometem emendar? Quando agora se fala de educação sexual e das perversões que alguns consideram educativas, a coisa fica séria. ...


João César das Neves
In DN - 23. 02. 2009


Lei e selva